Nair Corrêa Heerdt
O adulto em mim caminha de mãos dadas com a criança que fui e, ainda, vive em mim à semelhança da música:
BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE, 14 Bis
Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente, o sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra o menino me dá a mão
Ele fala de coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor
Pois não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver
Não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal
Bola de meia, bola de gude, o solitário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança o menino me dá a mão
Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão...
Ela me ajuda a relembrar a infância, adolescência e vida adulta, pessoal e profissional. A criança sempre à flor da pele vinda lá dos cafundós do Maranhão insiste em vir à tona em todos os instantes de minha vida, principalmente quando observo meus alunos na escola.
Redesenho minhas memórias neste texto de forma contínua, sem separações temporais, porque elas estão imbricadas, emaranhada umas às outras. A infância foi ligada a educação, a adolescência, a formação, ao casamento, a separação, a vida acadêmica, a vida atual... Não vejo rupturas no vivido para separar períodos, épocas etc. Leiam-na e vejam se concordam comigo:
As lembranças se gravam na minha memória com traços cujo encanto e força aumentam dia a dia; como sentindo que a vida me escapa, eu procurasse aquecê-la pelos seus começos.
(Rousseau apud Bosi, 1994, p. 34)
Com Rousseau “como sentindo que a vida me escapa, eu procurasse aquecê-la pelos seus começos”, na busca da felicidade, importa saber primeiro sobre o próprio nascimento. Informa minha CERTIDÃO DE NASCIMENTO, que vim à luz, em casa, numa noite escura às 20 horas do dia 23 de abril, de1955, na cidade Barão de Grajaú, no Estado do Maranhão. Meus pais, Fabrício Felicíssimo de Andrade (infelizmente já ao lado do papai do céu) e Maria Corrêa de Andrade, uma mulher saudável aos 85 anos. Tiveram quatro filhas, sou a terceira. Sou descendente de italianos pela linhagem paterna e de portugueses pela materna.
As famílias pobres da cidade mandavam suas filhas estudarem em casas de parentes, numa cidade chamada Bacabal. Minhas irmãs foram e eu por ser a mais nova permaneci em casa com meus pais. Fiquei praticamente como filha única, muito mimada, mamei até oito anos. Faziam tudo que eu queria, na realidade não recebi uma educação adequada na época, pois só brincava, era totalmente livre e em regras. O mundo girava em torno de mim e para mim.
Moleca! Vivia em cima das árvores, comendo seus frutos in loco. Falava muito com meus amigos Invisíveis, que me lembra o Desenvolvimento das fases da fala de Vygotsky a fala egocêntrica (FE) (a criança fala para ela mesma), só que esta fala nunca desapareceu, até hoje me pego falando sozinha. Período intenso e muito curto, que não me preparou para a próxima fase da minha vida: a escola. Trago este texto de Loris Malaguzzui (apud Faria, 2003), que espelha bem a próxima experiência a ser vivenciada e o término da primeira:
A criança é feita de cem.
A criança tem cem mãos, cem pensamentos, cem modos de pensar, de jogar e de falar.
Cem, sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar.
Cem alegrias para cantar e compreender.
Cem mundos para descobrir. Cem mundos para inventar.
Cem mundos para sonhar.
A criança tem cem linguagens (e depois, cem, cem, cem), mas roubaram-lhe noventa e nove.
A escola e a cultura separam-lhe a cabeça do corpo.
Dizem-lhe: de pensar sem as mãos, de fazer sem a cabeça, de escutar e de não falar,
De compreender sem alegrias, de amar e maravilhar-se só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe: de descobrir o mundo que já existe e de cem, roubaram-lhe noventa e nove.
Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação,
O céu e a terra, a razão e o sonho, são coisas que não estão juntas.
Dizem-lhe: que as cem não existem. A criança diz: ao contrário, as cem existem.
Em perfeita sintonia com essas palavras de Malaguzzui em 1963, mudamos para Bacabal e fui matriculada em uma escola católica privada, onde as meninas usavam saia azul com pregas, abaixo do joelho e blusa branca. Fiquei apavorada! Lá no interior eu andava só de calcinha. Tive de me acostumar com o uniforme da escola. Essas lembranças me reportam a Mário Quintana em sua bibliografia: No retrato que me faço, traço-a-traço, às vezes me pinto nuvem, às vezes me pinto árvore... Essas palavras refletem bem o vivenciado nesta fase e, a necessidade de buscar novas formas de me colocar no mundo.
A escola, acima citada, chamava-se “Colégio Nossa Senhora dos Anjos” foi construída pelos padres e freiras, (religiosos alemães fugidos da guerra). Havia de tudo, roda gigante, balanço, gira-gira era um verdadeiro playground de hoje.
Eu adorei! Tudo era novidade e podíamos brincar a vontade, (isso eu pensava) mas a realidade era outra, tinha várias regras, que eu desconhecia, mas minha mãe muito carinhosamente foi me conscientizando para obedece-las que tudo era para o meu bem.
Apesar de ser uma criança egoísta, teimosa, mimada, rebelde aceito facilmente mudanças, não gostava muito de obedecer, mas logo lembrava que se não cumprisse as regras, nada de brinquedos. Do que me lembro nessa escola tinha de tudo em todos os sentidos, os nossos professores eram todos padres, frei e freiras, mesmo sendo alemães transmitiam um leque amplo de aprendizagens, fazíamos muitas excursões. Uma vez, fomos a Barra do Corda, só havia índios, a irmã Berta, nossa professora de quase todas as matérias, aproveitou e deu uma verdadeira aula sobre os índios, saímos de lá sabendo tudo sobre eles. Quando íamos a São Luiz, era uma aula diferente, a cidade foi construída pelos franceses onde deixaram muitas ruínas, mas logo tomada pelos portugueses, que deixaram lindos prédios com seus azulejos. Pena que nesta época estávamos na adolescência e não prestávamos muita atenção só queríamos ir à praia.
Fizemos, também, uma excursão para conhecer “A casa de Farinha”, e as “Palmeiras do Babaçu” como era do nosso cotidiano a aula foi dada por nós, alunos. A casa de farinha é o local onde se transforma a mandioca em farinha. Nesta as tarefas são divididas: alguns homens são responsáveis pelo processo de arrancar a mandioca da roça e transportá-la para a casa de farinha. As mulheres e crianças raspam os tubérculos e extraem o amido ou polvilho. O trabalho se estende pela noite, quando acontecem as chamadas farinhadas. Aparecem os sanfoneiros, violeiros, dançadores e entre goles de cachaça, café com beiju e muita alegria, o trabalho continua a noite inteira. A farinha de mandioca é mais usada para fazer vários tipos de farofa, pirão, beiju e em uma grande quantidade de receitas da culinária brasileira. A casa de farinha ajudou a fixar o homem à terra, transformando a mandioca num importante alimento, responsável pela diminuição da fome em algumas regiões brasileiras, (Norte e Nordeste). Como nossos professores eram todos alemães, ficavam encantados com a nossa explicação, que fazia parte do nosso cotidiano.
casa de farinha os pais Os filhos
Aproveitamento total do babaçu. Considerada a mais rica palmeira brasileira, o babaçu serve de fonte de renda para pelo menos 400 mil quebradeiras de coco no Brasil. Da folha da palmeira, que pode chegar a 20 metros de altura, pode se fazem telhado para as casas e artesanato; do caule, adubo e estrutura de construções; da casca do coco, carvão para alimentar as caldeiras da indústria; do mesocarpo, a nutrimistura usada na nutrição infantil; da lubrificante e até mesmo sabão. Palmeira amêndoa pode obter-se ainda o óleo, empregado na alimentação e na produção de combustível.
Palmeira do babaçu casas feita com as folhas Cacho do coco babaçu
Tive uma adolescência tranquila. Isso não quer dizer que não tive os mesmos problemas e os mesmos conflitos de todos os adolescentes. Experimentei ansiedades, conflitos, problemas, mas com tranqüilidade, segurança e confiança em mim mesma. Minha única obrigação era estudar, não fazia nada em casa.
E, assim, foram passando os anos, a escola procurava preencher o que precisamos com seus conhecimentos, pois, por ser uma cidade pequena a melhor coisa que tinha era ir à escola. Estudei nesta escola até o segundo ano do Normal (antigo magistério). Escolhi o curso Normal, ou a profissão de professora, porque na cidade só existiam dois cursos de Ensino Médio: regular científico e ou técnico Normal. Os meninos estudavam no científico e as meninas o Normal, era regra na cidade na época.
Durante o curso de magistério, o que aconteceu de mais interessante, além de casar-me no segundo ano, foram às atividades de estágio, nos dois primeiros anos fazíamos planos de aula, que eram corrigidos e depois aplicávamos em salas de aulas do primário no próprio colégio realizado no período contrário às nossas aulas. Estágio que consistia na prática de ensinar e a professora da classe, que era também a orientadora, observava, faziam anotações e depois nos davam notas. Foi durante esta preparação que aprendi tudo o que sei sobre “dar aulas”, pois foi um excelente tempo de preparação, que nunca mais encontrei em nenhum outro curso de formação que fiz, seja na academia, seja em serviço.
Embora tranquila, a minha adolescência foi, também, muito rápida: com treze anos, tive meu primeiro namorado, com quinze meu segundo e com dezesseis meu terceiro e último, casei-me com ele.
Antonio Heerdt é o seu nome, catarinense, morava num lugarejo chamado Forquilinha, município de Criciúma, cujo idioma oficial era o alemão. Todos só falavam alemão. Antônio, foi alfabetizado em alemão em colégio de Freiras, (todos vieram fugidos da guerra) ganhou uma bolsa e foi estudar na Alemanha, retornando graduado e pós-graduado em Engenharia de Refrigeração e veio estagiar em Bacabal, (em 1991).
O Senhor Antonio foi se apaixonar logo por mim. Eu, Nair, moradora da cidade pequena, menina sapeca, namoradeira que gostava de quebrar regras, mal educada, sem vínculos afetivos, desprendida de tudo e de todos, que andava de bicicleta com mini saia, sem ligar para o que as pessoas falavam, segura de si falava a verdade sem pensar como magoava as pessoas. E com a única responsabilidade estudar.
A memória aparentemente mais particular remete a um grupo. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. É no contexto destas relações que construímos as nossas lembranças. A rememoração individual se faz na tessitura das memórias dos diferentes grupos com que nos relacionamos. Ela está impregnada das memórias dos que nos cercam, de maneira que, ainda que não estejamos em presença destes, o nosso lembrar e as maneiras como percebemos e vemos o que nos cerca, se constituem a partir desse emaranhado de experiências, que percebemos qual uma amálgama, uma unidade que parece ser só nossa. As lembranças se alimentam das diversas memórias oferecidas pelo grupo, (...) denominada 'comunidade afetiva'. E dificilmente nos lembramos fora deste quadro de referências. Tanto nos processos de produção da memória como na rememoração, o outro tem um papel fundamental. (Kussel, s/d, p. 4)
Para Kussel, a memória se constitui nas relações sociais entre os diferentes grupos em que convivemos. Na minha adolescência a influência do grupo social em minhas decisões foram muito poucas, talvez nulas, pois era muito senhora de si, muito decidida e, também como já disse muito egoísta. No entanto, a decisão de casar, aos dezessete anos, sofreu grande influência da família, como relato abaixo.
Eu não queria compromisso, minha vida era tão boa, dançava, paquerava ia a praia fazia tudo que gostava. Mas minha mãe vendo um ótimo partido fez uma lavagem cerebral em mim, no bom sentido para ela, porque mãe quer sempre o melhor para seus filhos, os dois conseguiram o que queriam casei-me com ele, aos dezessete anos, (em 16-12-1992). Outro fator que me levou ao matrimônio foi a liberdade que teria, pois Tony garantiu que não me exigiria nada, muito pelo contrário, seria dona de minha casa, do meu tempo e de minha vida, ao contrário do que ocorria em casa, em que minha mãe me vigiava bastante.
A lua de mel foi em Forquilinha, na casa de sua mãe com onze irmãos, passei a viagem inteira decorando o nome dos irmãos. O Tony tinha muita paciência comigo, fez uma promessa a minha mãe, disse: Dona Maria, a Nair vai ter a mesma vida que ela tinha aqui em sua casa. Primeiro, eu nunca entrava na cozinha, por não saber fazer nada e nem ter vontade de aprender, ele cumpriu a promessa foi um ótimo marido até 1996. Até hoje eu não sei para que fui educada. Acho que só para dar aulas.
Vim morar em São Paulo, onde fiz o terceiro e quarto ano do magistério, em uma escola completamente diferente da anterior, pois o estágio era de observação, o tradicional que tão bem conhecemos. Nesta fase não ministrei mais aulas, apenas observava a professora.
Em 1973, fiquei grávida, mas continuei a estudar. Fui a Bacabal para o nascimento da primeira filha Marianne em 12-09-73, voltei a São Paulo em 27-09-73, quem cuidou da minha filha foi uma irmã do Tony que é freira, chama-se irmã Cecília, cuidou até a minha formatura. Terminei o curso Normal em 1975, e em 1978 terminei a faculdade de Pedagogia, cuja maior dificuldade era estudar com uma criança pequena, conciliar horários, quem cuida. A pedagogia foi muito mais fraca que o curso normal no Maranhão, líamos muito, fazíamos resenhas e discutíamos na classe era apenas teoria, com estágio igual do magistério. A maior marca foi no dia da colação de grau, durante a cerimônia, a Marianne gritou “Mamãe” e todo mundo olhou para ela e para mim. Emocionei-me muito neste dia. Outra lembrança constante a corroer a alma é a saudade de minha terra e de tudo o que vivi por lá e que esta música de Nara Leão tão bem retrata
Cuitelinho
Cheguei na bera do porto
onde as ondas se espaia.
As garça dá meia volta,
senta na bera da praia.
E o cuitelinho não gosta
que o botão de rosa caia.
Quando eu vim de minha terra,
despedi da parentaia.
Eu entrei no Mato Grosso,
dei em terras paraguaia.
Lá tinha revolução,
enfrentei fortes bataia.
A tua saudade corta
como aço de navaia.
O coração fica aflito,
bate uma, a outra faia,
E os oio se enche d’água
que até a vista se atrapaia.
Em 19-08-1976 nasce meu segundo filho, Adriano, havia uma moça que trabalhava em casa, mas quando o Adriano nasceu ela foi embora, minha cunhada ajudou um pouco, depois aprendi a cuidar do bebê, só não dava banho essa era tarefa do Tony.
Se em São Paulo a saudade era grande em 1979 tornou-se pior, pois fomos morar em Buenos Aires, o Tony foi gerenciar uma filial da Tetra Park firma em que trabalhava na época. Em 19-04-80 vem ao mundo meu terceiro filho Fabrício ele era Portenho. Voltamos ao Brasil em 1983, como a firma fica em Monte-Mor, decidimos viver em Campinas. Em 29-08-87 perdi o Fabrício, acidente em casa provocado por ele. (Tem dia que consigo contar o acontecido, mas geralmente evito contar).
Memória individual e coletiva se alimentam e têm pontos de contato com a memória histórica e, tal como ela, são socialmente negociadas. Guardam informações relevantes para os sujeitos e têm, por função primordial garantir a coesão do grupo e o sentimento de pertinência entre seus membros. Abarcam períodos menores do que aqueles tratados pela história. Têm na oralidade o seu veículo privilegiado, porém não necessariamente exclusivo, de troca. Já a memória histórica tem no registro escrito um meio fundamental de preservação e comunicação. Memória individual, coletiva e histórica se interpenetram e se contaminam. Memórias individuais e coletivas vivem num permanente embate pela co-existência e também pelo status de se constituírem como memória histórica. (Kussel, s/d, p. 6)
Relembrar minha trajetória de vida, os acontecimentos que me levaram a ser o que sou hoje. Sinceramente, só mesmo por insistência do professor Guilherme de outra forma jamais pensaria nisso, pois a vida é tão corrida, constante que pouco tempo nos reservamos para relembrar o passado e tudo o que ele representou em nossa vida, ou ajudou a transformá-la. É estranho como nossa micro-história está entrelaçada a uma história maior, dos fatores sociais, históricos, que inconscientemente moldam nossas relações e nosso viver.
Comecei a vida profissional muito tarde, porque só podia trabalhar no período em que meus filhos estivessem estudando. Em 1986 iniciei como ACT (professora contratada) na rede estadual do Estado de São Paulo, na EEPG Joaquim Ferreira Lima em Campinas na Vila 31 de Março. Trabalhei na rede estadual até o ano de 1993 e mudei de rede, devido ao salário do município ser melhor que o do estado. Prestei o concurso da Prefeitura em 1990.
Em 1996 eu e Tony nos divorciamos, divorcio amigável com nossos filhos já grandes, causa provável muito tempo de casamento.
Trabalhei em diversas escolas, inclusive na Instituição do Padre Haroldo Rahm, com os adictos e concomitantemente no Presídio Ataliba Nogueira, na FUMEC com os alunos (em 1999). Momento em que perdi as noções de valores arraigadas desde a infância, porque como para os dois grupos tudo era normal, para mim as coisas passaram a assumir outra conotação: tudo parecia normal, também. Eu dava aulas para os internos, era muito triste, porque eram novos, com semblantes tristes, desesperançados. Jovens, muitas vezes com boa formação, bom poder aquisitivo e não encontravam sentido para viver ou um lugar no mundo. O que mais fazia durante as aulas era ler o livro Doze passos para os cristãos: jornada espiritual com amor-exigente, apresentação e apêndice pelo Padre Haroldo, com o lema “Só por hoje”, líamos muito este livro e a Oração da Serenidade:
Meu Deus,
Conceda-me a serenidade de aceitar as coisas que não posso mudar,
A coragem de mudar as coisas que posso
E a sabedoria de perceber a diferença.
Vivendo um dia de cada vez, apreciando um momento de cada vez;
Aceitando os reveses com caminhos para a paz;
Percebendo como Jesus fez,
Este mundo perverso como ele é,
Não como eu gostaria que fosse;
Confiando que endireitarás as coisas,
Se eu me entregar a à tua vontade;
Para que eu seja razoavelmente feliz nesta vida
E supremamente feliz contigo, para sempre, na outra amém.
(Reinhold Niebuhr, apud Rahm, 1994, p. 15)
O Presídio Ataliba Nogueira foi o melhor lugar que trabalhei, pois meu planejamento foi feito a partir do que eles queriam aprender, que era ler um pouco para escrever cartas e saber quanto era um sexto da pena, pois queriam comunicar-se com os parentes e saber, matematicamente, quanto já haviam cumprido da pena e quanto faltava para sair. Mentalmente, eles sabiam fazer os cálculos, mas não sabiam como colocar a operação no papel. Os presos tinham muita vontade de aprender e aprendiam muito rápido. A alfabetização foi espantosamente rápida, assim como não faltavam, pois a cada três dias de aula é diminuído um dia da pena. Tinham muitas habilidades para trabalhos manuais e artísticos. Faziam bonecos de lã, colocavam objetos em lâmpadas, desenhavam muito bem. Eles respeitavam muito os professores e professoras, quando ia acontecer alguma coisa eles já avisavam para que faltássemos.
Feita por um aluno do Presídio, material usado: só caneta bic.
Fizeram uma poesia pra mim. Homenagem a professora Nair.
“ O Nair”
Lá na minha escola, o estudo é alto astral
Minha turma é legal, e a tristeza não encosta
E tem a dona Nair, professora inteligente
Que está sempre sorridente, a alegria é que importa
Tem o Douglas meu amigo, e vai junto o seu irmão
Tem aluno que é faltante, mas tem sempre explicação
E assim segue a rotina, trabalhando e estudando
Pra mudar a nossa vida, pois a hora está chegando
“O Nair”, minha hora está chegando
Já estou me preparando, para o mundo retornar,
“O Nair”, continua ensinando
Que a turma está gostando
Do seu jeito de ensinar,
Nair ...
Vou sair, mais vou muito contente
Aprendi o que é ser gente, pois a vida me ensinou,
“O Nair”, nunca muda esse teu jeito de menina
Nunca perca este carisma, vamos sempre te amar,
Te amar...
Gemervone em 27-10-1999
Em 2001 trabalhei na Entidade CMPCA (Centro Municipal de Proteção à Criança e ao Adolescente). Neste local dava aulas de reforço para menores afastados do convívio dos pais por maus tratos. Davam muito trabalho na escola regular e no período em que ficavam comigo complementava a aprendizagem deles, comparecia nas reuniões de pais na escola. Lá tinham de tudo: comida, transporte escolar, roupas, cuidados médicos e odontológicos, menos amor e, quando fugiam iam para a casa deles, chegando lá os pais o rejeitavam e devolviam a instituição.
Deste início de vida profissional trago para reflexão as palavras de Alice sobre o caminho
"- Pode me dizer, por favor, por qual caminho devo seguir? - pediu Alice ao gato.
- Isso depende muito do lugar onde você quer ir- respondeu ele..
- Não me importa muito onde. – disse Alice.
- Então, não faz diferença o caminho a seguir...”
(Carrol, L. Aventuras de Alice ...)
Coloco estas frases por expressarem claramente as minhas ansiedades, inquietudes e dificuldades pelas quais passei no início da carreira para encontrar o caminho que me levaria a uma busca incessante de aprimoramento e chegar aos dias atuais com a bagagem de conhecimento, experiências e aprimoramento do meu trabalho pedagógico.
Em 2002, comecei a ministrar aulas no Parque Oziel, inicialmente nos contêineres, embaixo das árvores, depois fomos para a escola de lata. No ano seguinte, trabalhei no São Marcos por dois anos. Em 2004 me efetivei, no Pavanatti e no ano seguinte retornei ao Oziel onde estou até hoje. Em 2001 fiz pós-graduação em Psicopedagogia, em Jaboticabal e, em 2008 iniciei este curso de pós-graduação na UNICAMP (Pesquisa e a Tecnologia na formação Docente).
A princípio fiquei apavorada diante da necessidade de escrever, mas minha professora Maria Aparecida Damin, dizia: escrevam, simplesmente escrevam, escrevam o que quiserem, mas escrevam. Isso acontecia em todas as suas aulas, era uma motivação bem espontânea. Timidamente, comecei a escrever, e a cada nova escrita, ela escrevia um elogio, nunca fez críticas, só elogios e foi graças a ela que comecei a escrever sem pensar quem seria o leitor. Agradeço a essa professora, meiga, com jeito de menina, mas muito determinada e sabendo o que realmente queria de seus alunos, que conseguiu grandes transformações em nossa turma. Obrigada Cidinha.
A história é (...) construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria vida e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo (...) Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade (Thompson, 1992, p. 44).
Posso afirmar também que não sou a mesma professora. Atualmente percebo que o meu olhar é mais analítico, crítico e mais consciente, como professora no Parque Oziel, observo que os alunos, mesmo encontrando-se alijados de bens materiais e, muitas vezes, morais. Ainda assim acreditam na superação de suas dificuldades sociais e econômicas que vivenciam no dia-a-dia e que ao “matar um leão” por dia no final sairão vitoriosos e galgarão outros degraus em suas vidas tão sofridas, pois percebem que a pobreza não é sina, nem doença, mas fato construído historicamente e, que existe possibilidade de ser reescrita.
E nesta caravana da esperança vejo-me algumas vezes como o condutor e outras como o conduzido, ensinando e aprendendo junto com eles a Ser professor, a Ser mais humana, a Ser outra pessoa.
Em 2008, desenvolvi um projeto junto com os alunos, intitulado “Saúde, afetividade e educação global na escola” com um 1º ano do ciclo II F (3ª série), na EMEF “Oziel Alves Pereira”, localizada no bairro Parque Oziel.
Neste bairro tudo o que existe é demais: violência, falta de estrutura para tudo, falta de valores morais e sociais mundialmente cultuados, pobreza extrema. O que falta e muito neste bairro são os princípios que regem todo ser humano e que o humaniza, dada a realidade em que todos ali vivem.
Os motivos que me levaram a realizar este projeto foram inúmeros (falta de estrutura da comunidade em que os alunos estão inseridos, falta de preocupações mínimas com a saúde das crianças, falta de interesse dos demais professores pelo bem estar de seus alunos e suas carências...), mas o principal de todos: foi a minha preocupação com a formação global destes alunos pré-adolescentes com quem conviverei durante este ano letivo.
Ao assumir este grupo, encontrei todo tipo de aluno dentro da sala e todas as hipóteses de escrita e de leitura dos alunos (classificação piagetiana sobre a forma como os alunos pensam) que iam desde a pré-silábica, até a alfabética; alunos adolescentes com todos os problemas possíveis desta fase difícil da vida; crianças querendo atenção, enfim um universo de situações criadas na escola e fora dela.
Enfrentei resistências de todas as partes, dos demais educadores, dos alunos, da comunidade escolar que viam nestes alunos imagens do fracasso, reproduzindo uma violência, muito maior do que a social que tão bem conhecemos.
Iniciei este projeto ao receber diversos bilhetes dos alunos em que estes diziam: “Professora, Nair, eu te amo”; “(...) adoro estudar com você”; “Professora, você é muito bonita e legal” entre outras manifestações de escrita descobri que sabiam escrever, que precisavam é de uma orientação mais eficiente e que eu poderia ser este referencial na vida deles.
Escolhi este tema para trabalhar com as crianças do Parque Oziel, principalmente os alunos da 3ª série, porque observei neles o espelho da realidade em que vivem na ocupação com muitas carências. Dificuldades de atendimento que possibilite e eduque para questões de cuidados básicos com a saúde e educação, bem como a falta de valorização dos valores morais e sociais culturalmente difundidos e importantes para a população por permitirem que se dê o devido valor à vida humana como um todo.
Para tanto busquei valorizar o que já sabiam, ampliando seus conhecimentos de mundo através: de aulas de informática para pesquisas e inteirar-se do mundo digital; dinâmicas, que envolviam afetividade e ações transformadoras, passeios pelo bairro para conhecerem suas realidades e suas mazelas, caso da dengue, que está em estado de calamidade no bairro; palestras com agentes de saúde, como a dentista, que os ajudou a preservar sua saúde bucal e a entender como é importante a escovação, o uso de escovas individuais; cuidados com o corpo, sua higiene e alimentação etc.
O resultado foi excepcional, pois os alunos aprenderam a comportar-se em sociedade; a portar-se com dignidade a mesa, nos corredores da escola; entenderam como é importante terem conhecimento e que este é poder e quem detém o poder é reconhecido e valorizado, mesmo que morem na maior invasão da América Latina, que não tenham tratamento de esgoto em casa e muito mais, pois com o conhecimento adquirido nas aulas, poderão reivindicar das autoridades competentes melhorias para si e para seu entorno. Por tudo isso, posso classificar meu trabalho como primoroso e que valeu a pena ser realizado, mesmo que com muito sangue, suor e lágrimas.
Este ano estou com uma classe com 34 alunos com 7 anos e para começar o ano com “Alegria”, fiz um pequeno projeto com o tema Carnaval, cujo foco central foi a reciclagem. O tema foi escolhido por ser uma data festiva, uma manifestação da cultura de um povo e por ter forte tradição e repercussão no Brasil. As fantasias foram confeccionadas com sucatas. E os objetivos eram: conhecer a história do carnaval e suas características.
Nesta pesquisa descobrimos que o Carnaval começou há seis mil anos atrás. Começou no Egito para comemorar as coletas. Tinha também as festas gregas e depois as festas Romanas com os bailes de máscaras. Aqui no Brasil o carnaval é uma festa popular bastante comemorada.
No Brasil o carnaval é comemorado de diversas maneiras nos diferentes lugares do País. No Rio de Janeiro e em São Paulo tem os desfiles das escolas de samba. Na Bahia tem os trios elétricos. Em Pernambuco, na cidade de Olinda, tem o desfile dos bonecos gigantes. Em Campinas, foi construído um sambódromo para as pessoas assistirem as escolas de samba e os trios elétricos que passam por lá.
A comunidade do Parque Oziel foi representado pela escola de samba "Princesa de Madureira" e apresentou o enredo "O sonho de toda criança é conhecer a Disney." Muitos alunos participaram dos desfiles ou foram assistir com seus familiares, nas semanas seguintes o que mais comentaram foram: a sensação de desfilar na avenida, as fantasias; o prêmio porque a escola foi a vencedora do primeiro grupo; o que estão programando para o próximo ano etc.
No nosso projeto realizamos:
A pesquisa sobre a história do carnaval, seus folguedos, adereços e fantasias ao redor do mundo;
Pesquisamos a história do carnaval de Campinas e a participação do Parque Oziel no mesmo, com o desfile na Escola de Samba Princesa do Madureira.;
Em sala, ouvimos marchinhas, sambas antigos, sambas atuais e falamos sobre a música de carnaval de outros lugares do país: frevo, maracatu, axé, funk etc;
Por fim, confeccionarmos fantasias e adereços para cada aluno e promovemos um baile de carnaval na sexta-feira, finalizando o trabalho com conversas sobre o que vivenciaram no período do carnaval com seus familiares.
O resultado disso tudo apresentamos nas fotos abaixo em que finalizo estas minhas recordações.
Carnaval do 2º ano “C”
Referências:
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CARROL, L. As aventuras de Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Ed. Ática, 1989.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de. O espaço físico como um dos elementos fundamentais para uma pedagogia da Educação infantil. In: __________, PALHARES, Marina Silveira (orgs). Educação infantil Pós-LDB: rumos e desafios. Campinas, SP: Autores Associados, 2003, p. 67-99.
RAHN, P. Haroldo J. Doze passos para os cristãos: jornada espiritual com amor-exigente. 7ª edição. São Paulo: Edições Loyolas, 1994.
IZQUIERDO, Iván. A Mente Humana. Centro de Memória do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUC-RS. Porto Alegre (RS), Brasil, 2000.
KISHIMOTO, T. M. O Jogo e a Educação Infantil. São Paulo: Ed. Cortez, 1994.
KUSSEL, Zilda. Memória e memória coletiva. Disponível em www.museudapessoa.net. Acessado em 03/12/2008.
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IZQUIERDO, Iván. A Mente Humana. Centro de Memória do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUC-RS. Porto Alegre (RS), Brasil, 2000.
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LEONTIEV.KUSSEL, Zilda. Memória e memória coletiva. Disponível em www.museudapessoa.net. Acessado em 03/12/2008.
LURIA. A. O Desenvolvimento da Escrita na Criança. In: VYGOTSKY; LURIA;
In: Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Ícone: Editora USP, 1988.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
sexta-feira, 12 de junho de 2009
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